Vivemos tempos de oito ou oitenta, de tudo ou nada, em que equilíbrio e meio-termo parecem quase nunca ter lugar. Vivemos cada vez mais informados sobre o que faz bem ou mal e, de forma sensata, tentamos ajustar o nosso estilo de vida para que a possamos viver com a melhor qualidade e saúde possíveis. Todos sabemos que devemos evitar o sal, alimentos processados, açúcar, e até vamos aprendendo a ler rótulos para fazermos escolhas mais acertadas, mas não vivemos em função disso. Ou não devemos.
Onde traçar o limite entre a preocupação com alimentação e a obsessão? Quando há uma aplicação exagerada das regras básicas de uma boa alimentação, podemos estar perante um quadro de Ortorexia.
Apesar de não integrar o famoso manual das perturbações mentais DSM-V, que é essencialmente um guia psiquiátrico, a Ortorexia é já amplamente reconhecida como um distúrbio do comportamento alimentar, que se caracteriza pela obsessão por alimentos saudáveis, bons ou puros, digamos assim. A fixação é de tal ordem que a pessoa pode passar o dia a pensar e a planear as suas refeições, analisar escrupulosamente os rótulos ou eliminar um ou vários grupos alimentares por considerá-los nocivos, correndo o risco de desnutrição ou complicações que podem ser fatais. Acresce a tendência ao isolamento, não só porque evitam comer em casa de amigos e/ou em restaurantes, pela ausência de controlo sobre os alimentos e a sua confeção, como se vivessem numa ameaça constante de envenenamento, mas porque os outros tendem a afastar-se por se se sentirem incomodados com o discurso persistente e fundamentalista em torno da alimentação.
Ao contrário da bulimia e da anorexia, na ortorexia a preocupação não é o peso, mas sim a saúde, mas uma preocupação levada ao extremo e, portanto, pouco saudável. Tal como na generalidade dos distúrbios alimentares, é um problema que se manifesta na relação com a comida, mas que tem a sua origem na relação consigo próprio. O que está por trás muitas vezes é uma personalidade marcadamente perfecionista e com enorme necessidade de controlo que quase sempre esconde fragilidades emocionais muito significativas. É, de certa forma, um sintoma que serve de distração para o problema principal. Com alguma frequência aparece como disfarce de um quadro de anorexia supostamente em recuperação. Outras vezes pode surgir na sequência de um problema de saúde grave, em que a pessoa passa a adotar hábitos mais saudáveis, mas acaba por levá-los ao extremo.
Desde que comecei a dedicar-me à relação entre a alimentação e a saúde mental, considerando ambas as direções desta relação, tenho estado mais envolvida nas redes sociais e tenho-me apercebido de um fenómeno verdadeiramente preocupante: existem inúmeras páginas/contas de bem-estar e alimentação (supostamente) saudável que, na verdade, escondem perturbações do comportamento alimentar. Obviamente não podendo fazer diagnósticos através do que observo nestes contextos, serão bastantes os quadros de anorexia e ortorexia, em que esta última muitas vezes mascara a primeira. São contas com milhares e milhares de seguidores (e patrocínio de marcas de suplementos), que usam os rótulos “saudável”, “clean” e outros termos supostamente “do bem”, como tanto se diz neste meio. São pessoas com enorme fragilidade que obtêm a validação e a autorização do seu distúrbio, influenciando milhares de outras pessoas frágeis. Obtendo este reconhecimento, reforçam a sua autoestima de forma negativa, mantendo a ilusão do saudável e não procurando ajuda. Porque “se milhares de pessoas apoiam, é porque deve ser certo, correto?” Errado. E ai de nós, psicólogos e nutricionistas, que nos atrevamos a alertar e a sensibilizar, porque rapidamente aparece um especialista formado na universidade do google a dizer-nos que a celebridade tal é que sabe e que nós na verdade só queremos dizer que as pessoas estão doentes e precisam de ajuda porque temos falta de pacientes. Não aconteceu comigo, ainda, mas já vi acontecer.
E porque nesta era do oito e oitenta facilmente se cai no extremo oposto, vale a pena esclarecer que falar dos riscos da obsessão pela alimentação saudável ou das dietas xyz não significa apoiar a má alimentação, a obesidade ou os comportamentos de risco. Recentemente vi uma publicação em que um médico, autor de um best-seller, questionava e ridicularizava o diagnóstico de ortorexia, afirmando que esta última poderia salvar vidas, confundindo obviamente a linha que separa o equilíbrio do excesso e a saúde do desequilíbrio.
O perigo surge quando achamos que temos de estar nos extremos opostos. Falar do perigo da ortorexia não significa defender uma má alimentação, assim como sensibilizar para uma alimentação saudável não significa criar fobias, obsessões e histerias alimentares. Da mesma forma como quando defendemos uma cultura antidieta, não estamos a promover a obesidade nem uma alimentação à base de fritos e doces. O importante é o equilíbrio, termo às vezes também mal aplicado. No que respeita à alimentação, equilíbrio será o privilégio de vegetais e frutas, evitando gorduras trans, alimentos processados e açúcares, como é certo e sabido. Mas, atrevo-me a dizer que não vamos morrer se comermos uma pizza ou um petit gateau de vez quando.
Bom, morrer iremos de qualquer maneira, mais tarde ou mais cedo. Todos queremos que seja mais tarde e melhor, por isso claro que há uma série de comportamentos que nos podem ajudar a viver de uma forma mais saudável e a evitar doenças graves. Mas se a preocupação pela alimentação se transformar numa obsessão isso também pode ser fatal, não só pelas carências que pode causar, mas porque o stress também mata. Por isso é suposto a alimentação ser uma fonte de prazer, energia e tranquilidade e não uma fonte de sofrimento. Se assim é, o acompanhamento psicológico e a reeducação alimentar serão cruciais. Há um grande enfoque nos hábitos que devemos adotar para promover a saúde do corpo, mas a doença mental é das mais incapacitantes e a que mais influência terá nas escolhas que fazemos diariamente e, consequentemente, no nosso futuro.