Vivemos tempos conturbados em que sinais de crescente violência e perda de valores são visíveis um pouco por todo lado. O ciberespaço parece não fugir a esta tendência e observamos diariamente comportamentos hostis e agressivos nas redes sociais.
Podemos achar que este comportamento se restringe a grupos mais extremistas ou a temas que facilmente geram polémica, como o futebol, a Igreja e a política. Mas este fenómeno parece ser cada vez mais generalizado e, certamente, não precisaríamos de ir muito além da nossa própria “rede de amigos” para observar comentários que nos chocam pela agressividade e intolerância, que muitas vezes nem reconhecemos como característica dessa pessoa. Basta também espreitar os comentários de qualquer publicação, sobre qualquer tema, vinda de qualquer fonte, para encontrar pelo menos um comentário hostil e ofensivo. Desde o comentário impulsivo e quase inofensivo de alguém a quem o dia correu mal, passando pela piada mal conseguida, pela costela ativista, até ao extremismo e aos ataques gratuitos.
Mas que fenómeno é este? Por que razão existe tanta fúria por trás dos écrans? Estar “do outro lado” parece ser o principal fator associado a esta hostilidade. Por um lado, o grau de anonimato (ou pelo menos de distanciamento) dos interlocutores; por outro, a ausência de comunicação não-verbal (linguagem corporal, contacto ocular, tom de voz) que reduz a empatia e a autorregulação. Num contacto pessoal, habitualmente ajustamos a nossa postura em função dos sinais que recebemos. Nas relações online, não recebemos esses sinais, o que dificulta a autorregulação, mas promove também o mal-entendido, uma vez que a perceção do tom da conversa ou da intenção é muitas vezes uma projeção individual. Quem está do outro lado assume um certo estatuto de “não pessoa”, em casos extremos como se de um jogo se tratasse. Neste sentido, impossibilita-se novamente a empatia, na medida em que não há como analisar o que a “não pessoa” poderá sentir/pensar.
Há mais de uma década, no seu artigo "The Online Disinhibition Effect", o psicólogo John Suller apontava seis fatores que contribuem para este comportamento online: anonimato dissociativo ("as minhas ações não podem ser atribuídas à minha pessoa"); invisibilidade ("ninguém pode dizer como eu sou ou julgar meu tom"); assincronia ("as minhas ações não ocorrem em tempo real"); Introjeções solipsísticas ("tenho que adivinhar quem são estas pessoas e as suas intenções porque não as vejo"); imaginação dissociativa ("isto não é o mundo real, não são pessoas reais"); e minimização da autoridade ("não há figuras de autoridade aqui, posso agir livremente"). Este fatores parecem conjugar-se num movimento dissociativo, desprovido de contacto com a realidade, de empatia, de autocrítica ou de culpabilidade.
Vivemos tempos em que se acentuam diferenças e desigualdades, competição em vez de cooperação, tempos em que a pressão do êxito e do cumprimento de objetivos nos deixa presos a uma falsa ideia de realização, que na verdade parece trazer muito mais frustração, tantas vezes libertada nas redes sociais. Vivemos numa sociedade marcada pelo vazio: vazio de valorização e de reconhecimento, vazio de afetos e de vínculos, vazio de valores e compreensão, vazio de amor próprio e pelo outro. Muitas vezes, o ciberespaço torna-se bode expiatório, campo de batalha e de descarga de frustrações, fragilidades, tristeza, revolta, baixa autoestima, do grito que não se consegue dar no "mundo real".
Muitos estudos referem que os “trolls”, esses duendes maquiavélicos e desestabilizadores, têm na verdade uma grande necessidade de atenção, aprovação e reconhecimento, alimentando-se do poder que sentem ao gerar discussões polémicas (diferentes de um debate) e ao ofender e destratar quem tem opinião diferente da sua, e procurando a pertença de quem os aceita (quem faz like e põe mais lenha na fogueira). Frequentemente são pessoas com fracas competências sociais, que ateiam fogos aqui e ali, na esperança de colmatar as suas fragilidades e sentimentos de inferioridade. Muitas vezes, sentem que ganham quando deixa de haver resposta de quem, saudavelmente, simplesmente se cansa de travar lutas sem sentido e de dirigir o holofote para o incendiário. Já diz o psicanalista Coimbra de Matos “Só puxa dos galões quem não tem c******”.
Mas os agressores são incansáveis nesta procura de companhia à força e vão ateando fogo por onde passam. Na verdade, existem páginas específicas que se dedicam a ridicularizar e rebater qualquer ideia contrária à dos seus membros, uma espécie de grupo de encontro de especialistas de tudo, que faz lembrar um pouco o grupo de adolescentes rebeldes a que se junta o outro adolescente rebelde, que aí encontra a aceitação inalcançável entre outros pares.
Apesar destas discussões online poderem ser vistas por alguns utilizadores como uma forma de libertar emoções negativas, em jeito de catarse, na maior parte dos casos parece apenas intensificar esses sentimentos. Há certamente muito mais a dizer sobre a hostilidade online e, obviamente, diferentes graus de desestabilizadores e diversos fatores na base deste comportamento, mas vale a pena pensar se, em certa medida, esta tendência não será o reflexo de uma sociedade cada vez mais marcada pela ausência de limites e pela perda de identidade e de pertença. Façamos do ciberespaço um palco de debate construtivo e enriquecedor.
Até breve!
Podemos achar que este comportamento se restringe a grupos mais extremistas ou a temas que facilmente geram polémica, como o futebol, a Igreja e a política. Mas este fenómeno parece ser cada vez mais generalizado e, certamente, não precisaríamos de ir muito além da nossa própria “rede de amigos” para observar comentários que nos chocam pela agressividade e intolerância, que muitas vezes nem reconhecemos como característica dessa pessoa. Basta também espreitar os comentários de qualquer publicação, sobre qualquer tema, vinda de qualquer fonte, para encontrar pelo menos um comentário hostil e ofensivo. Desde o comentário impulsivo e quase inofensivo de alguém a quem o dia correu mal, passando pela piada mal conseguida, pela costela ativista, até ao extremismo e aos ataques gratuitos.
Mas que fenómeno é este? Por que razão existe tanta fúria por trás dos écrans? Estar “do outro lado” parece ser o principal fator associado a esta hostilidade. Por um lado, o grau de anonimato (ou pelo menos de distanciamento) dos interlocutores; por outro, a ausência de comunicação não-verbal (linguagem corporal, contacto ocular, tom de voz) que reduz a empatia e a autorregulação. Num contacto pessoal, habitualmente ajustamos a nossa postura em função dos sinais que recebemos. Nas relações online, não recebemos esses sinais, o que dificulta a autorregulação, mas promove também o mal-entendido, uma vez que a perceção do tom da conversa ou da intenção é muitas vezes uma projeção individual. Quem está do outro lado assume um certo estatuto de “não pessoa”, em casos extremos como se de um jogo se tratasse. Neste sentido, impossibilita-se novamente a empatia, na medida em que não há como analisar o que a “não pessoa” poderá sentir/pensar.
Há mais de uma década, no seu artigo "The Online Disinhibition Effect", o psicólogo John Suller apontava seis fatores que contribuem para este comportamento online: anonimato dissociativo ("as minhas ações não podem ser atribuídas à minha pessoa"); invisibilidade ("ninguém pode dizer como eu sou ou julgar meu tom"); assincronia ("as minhas ações não ocorrem em tempo real"); Introjeções solipsísticas ("tenho que adivinhar quem são estas pessoas e as suas intenções porque não as vejo"); imaginação dissociativa ("isto não é o mundo real, não são pessoas reais"); e minimização da autoridade ("não há figuras de autoridade aqui, posso agir livremente"). Este fatores parecem conjugar-se num movimento dissociativo, desprovido de contacto com a realidade, de empatia, de autocrítica ou de culpabilidade.
Vivemos tempos em que se acentuam diferenças e desigualdades, competição em vez de cooperação, tempos em que a pressão do êxito e do cumprimento de objetivos nos deixa presos a uma falsa ideia de realização, que na verdade parece trazer muito mais frustração, tantas vezes libertada nas redes sociais. Vivemos numa sociedade marcada pelo vazio: vazio de valorização e de reconhecimento, vazio de afetos e de vínculos, vazio de valores e compreensão, vazio de amor próprio e pelo outro. Muitas vezes, o ciberespaço torna-se bode expiatório, campo de batalha e de descarga de frustrações, fragilidades, tristeza, revolta, baixa autoestima, do grito que não se consegue dar no "mundo real".
Muitos estudos referem que os “trolls”, esses duendes maquiavélicos e desestabilizadores, têm na verdade uma grande necessidade de atenção, aprovação e reconhecimento, alimentando-se do poder que sentem ao gerar discussões polémicas (diferentes de um debate) e ao ofender e destratar quem tem opinião diferente da sua, e procurando a pertença de quem os aceita (quem faz like e põe mais lenha na fogueira). Frequentemente são pessoas com fracas competências sociais, que ateiam fogos aqui e ali, na esperança de colmatar as suas fragilidades e sentimentos de inferioridade. Muitas vezes, sentem que ganham quando deixa de haver resposta de quem, saudavelmente, simplesmente se cansa de travar lutas sem sentido e de dirigir o holofote para o incendiário. Já diz o psicanalista Coimbra de Matos “Só puxa dos galões quem não tem c******”.
Mas os agressores são incansáveis nesta procura de companhia à força e vão ateando fogo por onde passam. Na verdade, existem páginas específicas que se dedicam a ridicularizar e rebater qualquer ideia contrária à dos seus membros, uma espécie de grupo de encontro de especialistas de tudo, que faz lembrar um pouco o grupo de adolescentes rebeldes a que se junta o outro adolescente rebelde, que aí encontra a aceitação inalcançável entre outros pares.
Apesar destas discussões online poderem ser vistas por alguns utilizadores como uma forma de libertar emoções negativas, em jeito de catarse, na maior parte dos casos parece apenas intensificar esses sentimentos. Há certamente muito mais a dizer sobre a hostilidade online e, obviamente, diferentes graus de desestabilizadores e diversos fatores na base deste comportamento, mas vale a pena pensar se, em certa medida, esta tendência não será o reflexo de uma sociedade cada vez mais marcada pela ausência de limites e pela perda de identidade e de pertença. Façamos do ciberespaço um palco de debate construtivo e enriquecedor.
Até breve!